Hipostasis; Considerações sobre o avesso

Pola Fernandez, chilena e radicada em Itú (Brasil), foi uma das seis artistas selecionadas pelo edital de Ocupação Fábrica de Arte Marcos Amaro (SP). A instituição é parceira do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea (RJ), onde realizou uma residência através do programa Casa B. A exposição, com curadoria de Ricardo Resende e Diana Kolker, resulta desse processo, ocupando simultaneamente os dois espaços: a antiga fábrica têxtil e o local onde outrora funcionou um dos maiores manicômios do país, em que foi internado Arthur Bispo do Rosario. Dois lugares que no presente são ressignificados pelas artes.

Arthur Bispo do Rosario desfiou uniformes do manicômio e com sua linha bordou e envolveu seus objetos. Com o gesto de desfiar Bispo desfez de forma literal - e nós tomamos seu gesto como metáfora - não apenas o tecido manicomial, mas o industrial. São as instituições disciplinares que Bispo desfaz. 

Pola Fernandez evidencia esses pontos de contato em suas arqueologias. A parede do antigo manicômio não é o outro da fábrica, o que está fora, mas o seu avesso. É a parte não exposta do mesmo tecido. É a parte que toca a pele, que fricciona as feridas, que absorve os odores e secreções do corpo que se quer docilizar. Seu processo, que envolveu artistas, usuários e profissionais dos serviços de saúde mental, começou com o olhar que mirou no fundo e se deixou ser olhado de volta. Experimentou variadas escalas, suportes, pigmentos, texturas e dimensões, com materiais que colaboraram para sua primorosa qualidade plástica. Revirando os avessos em uma ação utópica, penetrou camadas com mansidão e nos devolveu a urgência de tocar as texturas dos mundos que se desfazem para se refazer.

Diana Kolker e Ricardo Resende

 

Hypostasis; Inside Out Considerations

Pola Fernandez, Chilean and based in Itu (Brazil), was one of six artists selected by the Marcos Amaro Art Factory Occupation (SP). The institution is a partner of the Bishop of Rosario Museum of Contemporary Art (RJ), where she made a residency through the Casa B program. The exhibition, curated by Ricardo Resende and Diana Kolker, results from this process, simultaneously occupying both spaces: the old factory textile and the place where once was one of the largest mental asylums in the country, where Arthur Bispo do Rosario was admitted for treatment. Two places that are currently re-signified by the arts.

Arthur Bispo do Rosario undid uniforms of the asylum and with his thread embroidered and wrapped his objects. With the gesture of shredding the Bishop literally undid - and we take his gesture as a metaphor - not just the fabric of the asylum, but that of the industry as well. It is the disciplinary institutions that the Bishop undoes.

Pola Fernandez highlights these points of contact in her archeology. The wall of the old asylum for the insane is not that one of the factory, which is outside, but it’s inside out. It is the unexposed part of the same fabric. It is the part that touches the skin, that rubs the wounds, that absorbs the odors and secretions of the body that one wants to indulge. Her process, which involved artists, users, and mental health professionals, began with a look that looked deep inside and let itself be looked back at. She experimented with various scales, supports, pigments, textures and dimensions, with materials that contributed to its exquisite plastic quality. Turning the inside out into in a utopian action, she penetrated layers with meekness and returned the urge to touch the textures of worlds that crumble only to remake themselves.
Diana Kolker and Ricardo Resende


Cores Nyotas

A arte como forma de conviver na contemporaneidade é a prática artística de Pola Fernandez, a qual compartilha o seu cotidiano de trabalho com um grupo de mulheres negras auto identificadas como Mulheres Nyotas, na cidade de Salto, interior de São Paulo. A palavra Nyota, originada da língua africana swahili, significa estrelas. Mulheres Nyotas são as mulheres estrelas que refletem as cores do mundo na sua profusão.

Pola apresenta uma nova forma de pensar a construção da identidade e formação das memórias ancestrais desse grupo de mulheres. São fotografias resultantes de retratos realizados durante um convívio - corpo a corpo - ouvindo e vivenciando suas histórias do quotidiano sobre memória e ancestralidade, suas subjetividades culturais e condição de mulher, de mulheres negras. Elas se encontram e reencontram nas imagens fotográficas de Pola Fernandez

A artista utiliza como referência cultural e material no registro fotográfico a Chita: tecido utilizado como roupas dessas mulheres aparamentadas e também como pano de fundo do enquadramento do retrato fotográfico. A Chita, nesse caso, acaba sugerindo uma imagem onde as mulheres retratadas se camuflam com esse pano “cultural” por detrás delas. A Chita historicamente, simboliza na nossa cultura a origem de um povo transformado pelo tempo social, em um grupo marginalizado por sua história e simplicidade. É identificada também com a visualidade popular e com a pobreza material. No entanto, carrega uma profusão de cores que refletem a condição da alma e a cultura de uma nação.

Vivemos hoje um momento político dramático, onde parece que experimentamos um retrocesso nas relações interpessoais sociais. Entretanto, percebemos a arte em direção ao convívio social, a arte como proposição de conviver junto, de viver o cotidiano. São essas relações, portanto, que Pola Fernandez, com o grupo de Mulheres Nyotas propõe articular e ativar. Cores Nyotas é uma exposição da sinceridade que fala de uma cultura através da cor,
da roupa, da estampa. Roupas que falam sobre corpos que comem, andam e expressam felicidade.

Ricardo Resende - Curador
Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
Fundação Marcos Amaro

 

Nyotas Colors

The art as a way to coexist in contemporary times is the artistic practice of Pola Fernandez, who shares her daily work with a group of black women self identified as Nyotas Women in the city of Salto, in the interior of São Paulo, Brazil. The word Nyota, originating from the African language Swahili, means stars. Nyotas Women are star women that reflect the colors of the world in their profusion.

Pola presents a new way of thinking about the construction of the identity and formation of the ancestral memories of this group of women. They are photographs resulting from portraits made during a up-close relationship - listening and experiencing their everyday stories about memory and ancestry, their cultural subjectivities and the condition of women, of black women. They meet and re- encounter in the photographic images of Pola Fernandez.

The artist uses as a cultural and material reference in the photographic record the Chita: a type of fabric used as clothing by these women in pairs and also as a background for the framing of the photographic portrait. Chita, in this case, ends up suggesting an image where the women portrayed camouflage themselves with this "cultural" cloth behind them. The Chita historically symbolizes in our culture the origin of a people transformed by social time, in a group marginalized by its history and simplicity. It is also identified with popular visibility and material poverty. However, it carries a profusion of colors that reflect the condition of the soul and culture of a nation.

Today we are experiencing a dramatic political moment where it seems that we experience a setback in social interpersonal relationships. However, we perceive art towards social life, art as a proposition to live together, to live the daily life. It is these relationships, therefore, that Pola Fernandez, with the group of Nyotas Women proposes to articulate and activate. Colors Nyotas is a display of sincerity that speaks of a culture through color, clothing, print. Clothes that talk about bodies that eat, walk and express happiness.

Ricardo Resende - Curator
Bishop of Rosario Contemporary Art Museum

 

Mulheres Nyotas – A Constelação da Beleza

Independentemente dos contextos sociais e econômicos das sociedades globalizadas, há um elo profundo entre a pessoa e a sua ancestralidade, é por isso que as memórias arcaicas são trazidas para o cotidiano, para a festa, para as manifestações de religiosidade.

Todas essas memórias juntas fazem reviver o que há de mais simbólico na cor, na forma, no desenho, e noutras características visuais, que quando integradas ao corpo distinguem a pessoa, revelam a sua história e comunicam o seu desejo. 

Assim, a roupa não é apenas para vestir, é também para simbolizar. A roupa é uma extensão do nosso corpo cultural, que é muito mais ampliado do que apenas as possibilidades biológicas que herdamos.

A partir desse olhar, aquilo que é feito com o tecido, o metal, a fibra natural, ou com material reciclado, marca uma identidade, e quando está aliado a um penteado, uma maquiagem, forma, no seu conjunto complexo, um emblema que distingue cada corpo, cada pessoa. E, desta maneira, é possível singularizar, criar uma identidade.

Por tudo isso, um grupo de mulheres afrodescendentes chamadas de Nyotas, e que trazem nesta palavra da língua suaíli o significado de estrela, começam uma busca que mistura recuperação, transmissão, e, em especial, manifestação de beleza. 

E o que é a beleza. É tudo aquilo que podemos entender e desejar num sentimento de naturalidade, que é também um sentimento de verdade cultural. E marcar um lugar, um território social que se estenda pela complexa e múltipla tradução da história, das matrizes étnicas, dos padrões econômicos e culturais.

E para a mulher Nyota, recuperar a chita multicolorida é recuperar um símbolo que marca a beleza. E quando este tecido de algodão é disposto sobre o seu corpo adquiri um sentido estético excepcional. É um elo que ativa a sua beleza que está ainda associada a um cenário fotográfico. E tudo isso faz brilhar a estrela no céu de tantas Áfricas.

Raul Lody
Antropólogo e Museólogo


Vínculos

Habitar uma paisagem. Remontar o lugar com memórias de outras memórias. E tornar envolto, acolhido, um tempo mais antigo, que não apenas aquele de nesgas lembranças. De que são feitas as histórias da paisagem? Intangível, como o vento que se esvai sobre os mares, o tempo pontua a vida, em subidas e descidas, frenesis de histórias, vales de silêncios e gritos de emoção. É como convida a sentir a linguagem poética da artista Pola Fernandez, em sua série de imagens em grande formato enlaçadas em histórias de vínculos. Cada uma, um vale de tempos, de recordos e de suspiros.
 
O conjunto de obras da série Vínculos atina para uma relação íntima entre a existência e a paisagem. Vínculos de um duplo feminino – a mulher e a paisagem – delicadamente alinhavados pelas linhas de um bordado de pontas soltas. Pola Fernandez aglutina, nesta série, retratos de mulheres afrodescendentes e paisagens atemporais, quase oníricas. Fotografiascriteriosamente bordadas para serem vistas de frente e também pelo seu
verso. Um motim silencioso do ver e re-ver. Religações entre pontos e nós daquelas mulheres, conectadas a um outro lugar e a um outro tempo.
Com sua liberdade poética, a artista desloca os retratos dessas mulheres do lugar onde estavam, no momento do registro fotográfico, para os encantos de outras paisagens. E assim, vai criando vínculos. Entre fotografia e bordado, entre retrato e paisagem, fios nascidos das mãos de Pola Fernandez ligam mulher e pedra; mulher e água; mulher e terra; mulher e natureza. Para ela, as obras são um exercício profundo de encadeamento entre a artista e as mulheres retratadas, mas também a essas paisagens de memórias que passam a ser habitadas por elas.
Vínculos é a sobrelevação do trabalho de Pola Fernandez iniciado em Atavos em 2010, quando começara este bem sucedido projeto. Uma pesquisa artística legitimada pela parceria e diálogo da artista com o grupo de mulheres afrodescendentes de Salto, o NYOTAS. A artista retratou em um estúdio fotográfico, montado especialmente para o projeto, as mulheres da cidade, em conexão com retratos históricos de escravas do século 19 numa espécie de reconstrução de ligações.

E agora, em Vínculos, insiste nesta constelação ancestral e nesta captura simbiótica dos retratos, ampliando esse olhar para o lugar cósmico da paisagem. Um pacto sobre o lugar. De onde se remontam memórias, insumo para bordar o tempo de linhas e vestígios que nos apreendem em camadas e elos de uma mistura alquímica esparramada por entre o não- visto.

Fabiana Bruno


Atavos

Ancestralidade carrega-se no corpo.
Uma marca, que remonta temporalidades, e torna visível gestos imemoriais.
É em última instância uma forma que se expressa por imagem.
Uma imagem ancestral.
Corpo imagem.

Atavos, o título deste projeto fotográfico, é uma aproximação à palavra que vem do latim atavus e ao termo atavismo.
Uma tentativa bem sucedida da fotógrafa Pola Fernandez de levar a cabo uma investigação visual de como a ancestralidade pode se fazer ver.
Ao montar um estúdio fotográfico para capturar, por meio da tradição do retrato, atitudes ancestrais de mulheres africanas descendentes, a fotógrafa desmonta e remonta retratos históricos.
Reproduzindo retratos antigos de escravos em grande formato, Pola torna essas fotos do passado um tipo de “imagem oferenda” às mulheres retratadas em seu projeto, que ao serem fotografadas, entram simbiose com a “imagem ancestral” escolhida por elas. A desmontagem de passados.
Conexão e reconexão no mesmo instante. Uma remontagem de um retrato de ligação, uma re-construção, ainda que imaginativa, de uma ausente árvore genealógica em direção ao futuro dessa ancestralidade.

Fabiana Bruno